quinta-feira, 9 de maio de 2013

O Mundo dos Compulsivos


O MUNDO DOS COMPULSIVOS
e
A Divida Existencial

por V. E. Von Gebsattel

I. O Problema


O que sempre nos fascina ao encontrarmos com uma pessoa compulsiva é essa forma de ser tão distinta, tão impenetrada e talvez impenetrável. Setenta anos de trabalho clínico e de investigação científica não alteraram essa impressão.... Esta curiosidade intrigante nos impulsiona constantemente no afã de penetrar nos segredos desse mundo em que vive o compulsivo; pois este nosso mundo, no qual ele se encontra, não parece pertencer-lhe...
Nossa investigação se concentra na pessoa compulsiva considerada em sua totalidade e principalmente em sua forma especial de existir, que se situa em um mundo específico de ser diferente do nosso...

      II. Um Caso Histórico

Como base para nossas considerações vamos tomar um caso clínico... Vou apresentar muito sucintamente o seguinte caso histórico, com o único fim de apresentar uma base sólida e clara para as considerações que vamos fazer. Nosso caso é representativo do ‘psicopata anankástico’. O psicopata anankastico (A palavra ‘anankástico’ é derivada do grego ‘ananke’ - força e fatalidade – e significa ver-se arrastado pelo destino, sentir sua inevitabilidade e a impossibilidade de se escapar dele, como o experimentam subjetivamente estes pacientes; e o termo psicopata tem aqui um sentido que se restringe aos elementos psicopatológicos de tais pacientes). O compulsivo anankástico representa o tipo no qual os fenômenos de compulsão alcançam seu grau máximo de desenvolvimento sistemático...

Caso H.H

O paciente tem dezessete anos; dá impressão de timidez, embaraço, abatimento, introversão e inibição. Inteligente e ambicioso. Havia sido anteriormente o primeiro de sua classe e aprendia sem esforço. Teve que deixar o colégio em agosto de 1937 por fracasso total...
Queixa-se de compulsões. Para ele tudo é compulsão; não se vê livre nem por um segundo. Deseja intensamente liberar-se do seu sofrimento, mas não acredita em sua cura. Considera seu caso único. Esteve sofrendo compulsões durante oito anos sem saber o que o estava incomodando; se considerava normal. Desde sua primeira confissão nunca a considerou válida, porque, apesar de seus prolongados esforços durante horas, nunca conseguiu encontrar o “verdadeiro arrependimento”. A ansiedade o torturava em relação a certos votos. Ao recitar a saudação evangélica sentia que devia visualizar cada letra; ao não consegui-lo, cometia ¨pecado mortal¨. Comprometeu-se a fazê-lo a todo custo e como não obtinha êxito, quebrava um voto, um juramento, e tinha, então, que confessar ter perjurado 150 vezes. Por motivo da repetição da oração penitencial, surgiu a compulsão de contar. Quando um menino da escola proferia alguma palavra obscena em sua presença, ele a ouvia, e ao ouvi-la pensava, e ao pensá-la fazia; já que toda audição implica o pensamento correspondente, e todo pensamento é por si mesmo um ato. Escrúpulos muito agudos...
Aos doze anos, na manhã seguinte à sua primeira polução noturna, pensou ter molhado os lençóis, sentiu um forte cheiro e constatou que seu pênis estava úmido. A partir de então, nota que sua urina goteja, passa horas esperando que seque completamente e, ainda, envolve o pênis com papel higiênico a fim de que não lhe suje as roupas. Apesar desses cuidados, desenvolve um odor que o domina por todo o dia. Está sempre obcecado com o pensamento de cheirar mal. Mesmo estando a sós, essa sensação o tortura a ponto de impedi-lo de fazer as coisas mais simples, como usar o telefone. Por causa desse mesmo odor que ele considera objetivo, mostra-se mais tímido e inibido.
Em geral, todos os seus atos estão governados por compulsões. Começam pela manhã quando se levanta... Cada ação é dividida em seus últimos e mínimos detalhes, executadas com exatidão e com a máxima atenção. Tudo é ordenado e planificado: levantar-se, banhar-se, secar-se, vestir-se. Primeiro esse movimento, seguido do outro, e do próximo e do seguinte sempre na mesma sequência. Com freqüência tem que permanecer de pé com os braços levantados, empunhando sua esponja antes de seguir em frente. Logo deve estar de pé novamente e voltar a pensar cada detalhe mais uma vez, especialmente se tem a impressão de não ter realizado cada ato com perfeição, sem distração e com plena consciência de cada um deles. Toda esta recapitulação se produz, sobretudo depois de alguma perturbação ou omissão no cumprimento do seu cerimonial. Sua “toalete” dura horas, na realidade nunca termina, e sempre chega atrasado a todos os lugares. Por isso, tem uma “consciência culpada”. Esta compulsão pela ordem se impõe em tudo: no modo de comer, entrar e sair pelas portas (onde não pode encostar-se em nada), roupas e nos incontáveis objetos que toca...
Nunca goza de um momento de paz; sempre resta algo para analisar ou inspecionar ou recapitular ou repetir ou lavar, e em tudo o persegue o odor nauseabundo de seu corpo, o que é o mais torturante de todo o resto. Vive deprimido, sem esperança, e pensa que indivíduos como ele, se deixados a si mesmos, morreriam de fome. Não tem vida sexual.

III. Aspectos Perturbadores na Síndrome Compulsiva

¨A Fobia Anankástica“

Nossos anancásticos crônicos confirmam plenamente a dupla natureza da síndrome compulsiva tal como se a conhece nos círculos psiquiátricos. Primeiro: o ¨psiquismo perturbador¨ que geralmente adota a forma de fobia e, como reação a este, o ¨psiquismo defensivo¨ que pertence os atos compulsivos mais destacados... Ao distinguirmos entre fobia anankástica e psiquismo defensivo, só o fazemos por amor à ordem, mas sabendo que ambos os elementos na personalidade anankástica em sua relação com o mundo formam um todo em que as sucessões de seus componentes se intercambiam.

A Ilusão de um Odor Fóbico

No centro da enfermidade compulsiva de H.H. se destaca com os rasgos inegáveis do ¨psiquismo perturbador¨ a obsessão de um cheiro corporal ilusório. Originado em sua primeira ejaculação espontânea e desde então se instalou de uma maneira totalmente coerente (coerente com referência à direção vital regressiva do anankástico) no sistema urinário e excretor... Este caso pode figurar como modelo das perturbações anankásticas da volição. De ordinário, leva horas o processo de limpeza depois de cada eliminação, e apesar disso, o pênis continua úmido, sujo, e consequentemente, capaz de manchar suas vestes na forma de um odor repulsivo. Vemos aqui uma dificuldade bastante notável em realizar e concluir determinadas operações; se comprova uma total incapacidade para executar el acte de terminaison (Janet)...O mesmo processo de eliminação e limpeza sujam também, e a sua sujeira se propaga, no espaço (na roupa) e no tempo (perdurando todo o dia). Desde agora todas as situações da vida servem somente como ocasião para realizar a obsessão... O dar-se conta de um odor nauseabundo sempre é perturbador por natureza. Implica sentimentos de sofrimento, aversão, vergonha, repugnância. Fica claro o caráter reflexivo da reação de repugnância fóbica. Esta vem obstaculizar em geral todo ato normal, toda ocupação normal, todo contato normal com as pessoas; terminando por isolar totalmente o paciente.
Vimos que a ilusão do odor fóbico está intimamente ligada à incapacidade de dar por terminada uma coisa, especialmente em dar por terminada a limpeza corporal. A persistência do odor de urina é o reverso da impotência de voltar-se às tarefas diárias, e almejar novas metas. Todos os problemas que traz consigo ficam sem resposta adequada e como reação ante esta inibição, volta-se reflexivamente à sua preocupação com o desagradável cheiro ilusório, como para formar, por assim dizer, um contínuo homogêneo com que preencher o tempo que se vai transcorrendo. H.H. sente-se ¨grudado¨ a esse odor, expressando assim com propriedade a idéia de que a persistência de seu cheiro corporal é o símbolo de haver-se paralisado (emaranhado) no passado às custas do futuro, o qual, por sua vez, está representado nas tarefas que vão se apresentando...A incapacidade de concentrar sua energia na realização do seu desenvolvimento pessoal e no cumprimento de seus deveres é que constitui seu transtorno real, relacionado, talvez, com a inibição depressiva endógena. Em todo caso, está patente aí o propósito de cegar o manancial da vida, com o que se impede sua temporalização. Bloqueia-se o devir e fixa-se o passado. Esta fixação pode experimentar-se como uma polução, que se traduz no homem na experiência desse odor corporal gerador de ansiedade. Pois não se trata em absoluto de um odor real ou de uma sujeira efetiva; mas são ambos símbolos de uma vida privada de uma das possibilidades de purificação, como seria sua orientação voltada para o futuro. Assim vemos que o paciente compulsivo faz o que não pretende fazer, e não pode fazer o que pretende. A falta de liberdade patente na conduta do compulsivo pertence à essência de sua situação.

IV. O Aspecto Defensivo da Síndrome compulsiva e a Natureza da Compulsão

O caso de H.H. apresenta outro aspecto instrutivo. Como muitos anankásticos, sofre de um transtorno na capacidade de trabalhar, que se revela especialmente como uma dificuldade para empreender algo novo e para concluir o iniciado... Produz-se uma ruptura entre a ação e a realização; isto se traduz em atitudes grotescas, como quando H.H. permanece parado em sua casa vestido com sua jaqueta, mas não pode sair, pois não tem certeza se está, ou não,
com ela... A pessoa, em sua qualidade de ser vivente que avança até o futuro, não entra na execução objetiva de sua ação, e por isso, depois de realizada está exposta à dúvida de sua execução ou não...
Normalmente a vida se purifica mediante sua entrega generosa às forças do futuro e às tarefas que este convida. Ao frear e inibir sua marcha até sua auto-realização o indivíduo se cega ao manancial profundo de sua capacidade de vir a ser e de pagar assim a dívida de sua existência. Surge nele, então, um sentimento vago de culpabilidade, tal como vemos às vezes nos melancólicos inibidos. Esse sentimento de culpabilidade se concretiza nestes últimos na forma de auto-reprovação que pode resultar em manias incorrigíveis por estarem alimentadas pela inibição generalizada da capacidade do devir.
O sentimento de encontrar-se sujo poderia ser somente uma forma particular do complexo de culpabilidade no qual a vida inibida se dá conta indiretamente de seu estancamento. Non elevari est labi (Não levantar significa cair): assim parafraseia Franz Von Bader os ditos populares: ¨A ferramenta que não trabalha cria ferrugem¨, ¨Não ir adiante é voltar atrás¨, ou ainda: ¨A água que não corre forma um pântano; a mente que não trabalha forma um tonto¨ (V. Hugo).
O que revela a preocupação anankastica pela sensação de sujeira é a culpa de não livrar-se do passado. É preciso deixar cair o passado como o excremento; assim a vida sadia que aponta ao futuro vai soltando constantemente o passado, deixando-o para trás, eliminando-o e limpando-se dele. O compulsivo não toma o passado como um tempo pretérito – pretérito perfeito – (¨colado¨ ao passado, dizia H.H. de si mesmo); desse modo, não pode eliminá-lo, nem deixá-lo para trás, pois isso exigiria sua abertura ao futuro. Algo sem terminar pressiona e reclama a atenção do compulsivo, como reclama o futuro as energias e o entusiasmo da pessoa sadia. Assim sendo, o anankástico não só não avança em suas posições, mas ainda se vê invadido pelo passado através dos símbolos do impuro, manchado e morto... Ameaça com imundície e putrefação: símbolos todos de uma tendência nociva à personalidade, a seus valores, sua beleza e a sua perfeição...
¨Enquanto a carroça avança, as abóboras se acomodam.¨
*Grifos nossos;
* Breve resumo de um trecho do ensaio: El Mundo de los Compulsivos - V. E. Gebsattel;
*Livro: Existencia - Nueva Dimensión En Psiquiatría Y Psicología;
*Rollo May; Ernest Angel, Henry F. Ellenberger (eds). Madrid, Editorial Gredos S.A.

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